Insónia: Chromakopia
Pequenos excertos de cultura para estar acordado da melhor forma
Chromakopia foi lançado a 28 de outubro de 2024, escrito, produzido e arranjado por Tyler the Creator. É o seu oitavo álbum de estúdio e segue-se a Call Me If You Get Lost, lançado em 2021 com o mesmo cenário. É um álbum cujo género é difícil de definir, como é o caso dos últimos projetos de Tyler (abordo isso mais tarde), mas está, segundo o Rate Your Music, no género de West Coast Hip-Hop e Neo-Soul.
Para a promoção do álbum, Noid foi lançado como single e St. Chroma e Thought I Was Dead foram apresentados como singles promocionais. Noid é uma representação perfeita deste álbum e, como é possível verificar com tudo o que Tyler tem lançado nos últimos anos, é com propósito. Isto pode parecer que estou a afirmar o óbvio, mas enquanto os singles são normalmente o que um artista pretende promover, estas escolhas podem representar, simplesmente, o que é mais apreciado, sem qualquer substância, apenas sabor. Acrescentar editoras de música à receita só vai enfatizar essa necessidade de streams, alcance e o mesmo filme de sempre.
Tyler tem vindo a apresentar personagens para os seus álbuns e há dois álbuns atrás podíamos encontrar Igor em Igor (lançado em 2019), enquanto no já mencionado Call Me If You Get Lost, Tyler Baudelaire era a personagem presente. Ambos os indivíduos se debruçam sobre o tema do amor e da identidade, enquanto estão apaixonados, mas é com Chromakopia que conseguimos compreender a pessoa Tyler Okonma sem a máscara.
Separar as cores da palete
Agora, é melhor parar de dispersar as cores e simplesmente apresentar o preto e branco que vemos em Chromakopia. Ao fazer esta análise, vou também fazer o exercício de falar sobre o álbum e a sua direção, abordando a atuação oficial de Tyler no Camp Flog Naw, o seu próprio festival que já dura há 10 anos. Tendo em conta que ele partilhou a atuação gratuitamente no Youtube, considero que esta é a melhor representação ao vivo da sua visão do projeto.
1. St. Chroma — apresentado ao vivo
Em St. Chroma, a mãe de Tyler diz-lhe para confiar na sua luz e na sua criatividade. Ouvimos o som de bandas de marcha e isso é algo comum em todo o álbum. O ato de sussurrar é contínuo e transmite a ideia de algo que não deve ser dito, mas que é sentido. A mensagem Can you feel the light inside é alimentada com o coro arranjado por Tyler. A transição que se nota nesta faixa lembra muito o som de Igor. Vale ressaltar que a voz de Daniel Caesar é angelical.
2. Ra Tah Tah — apresentado ao vivo
Há um grande sentimento de auto-valorização e orgulho quando Tyler canta Bitch I’m really him. O som eletrónico nunca desaparece e Tyler valoriza o materialismo da sua vida como algo que alcançou. Tyler afirma que é o maior de Los Angeles depois de Kendrick Lamar, algo que é um prémio por si só. Logo a seguir, fazemos a transição perfeita para a faixa Noid, onde Tyler fala sobre
3. Noid — apresentado ao vivo
ser paranóico. Esta faixa usa algumas letras zambianas da faixa Nizakupanga Ngozi do álbum 45000 volts (lançado em 1977) da banda zambiana Ngozi Family:
Pobwela panyumba panga, uyenela ku nkala ndi ulemu (Noid)
Chifukwa, ine sinifuna vokamba, kamba (Noid)
Vokamba kamba vileta pa mulomo
(Wotangozi, wotangozi)
que se traduz aproximadamente para: “Quando vieres a minha casa, por favor sê respeituoso. Porque eu não gosto de falar demasiado. Falar demasiado gera mexericos”.
Esta faixa começa a representar o problema de Tyler consigo próprio, lidando com a etiqueta social, como confiar nos outros e como lidar com a fama, mesmo antes de ter 19 anos e fazer parte dos Odd Future, onde começou a ganhar fama.
Esta é também a razão pela qual ele afirma Never trust a bitch they could trap you — este vai ser um tema recorrente, direta ou indiretamente, ao longo desta produção musical. É relevante destacar a atuação de Willow e Thundercat, bem como do coro nesta faixa, porque lhe confere muita emoção.
Noid tem uma apresentação perfeita na versão ao vivo em Camp Flog Naw. O artista mostra o aspeto paranóico, aborda fisicamente o sentimento de estar a ser observado, e o espetáculo de luzes encapsula realmente este estado de espírito.
4. Darling, I featuring Teezo Touchdown — apresentado ao vivo
Tyler está sempre a apaixonar-se e isso contribui para o seu aspeto paranóico. Como ele afirma Monogamy is not for me. I’m thinking new crib, two kids until I fall for a new love . A única coisa estável na sua vida é a música e os Grammys que ganhou. Há algum beatboxing no fundo, e o arranjo eletrónico, bem como a ajuda de Teezo na voz, encaixam muito bem. Tyler reconhece que ele também é culpado, afirmando It’s not fair to just be stuck with me.
Transparency is key, be honest é uma mensagem transmitida pela mãe de Tyler que é crucial para a canção seguinte, mas já lá iremos.
Depois da atuação no espetáculo ao vivo mencionado acima, Tyler diz que o álbum está, há três semanas, em primeiro lugar (o vídeo foi lançado a 21 de novembro de 2024 e o espetáculo ao vivo realizado a 17 de novembro de 2024) e que está grato por as pessoas continuarem a apoiá-lo e até a apoiar o festival.
5. Hey Jane
A mãe de Tyler avisa-o para usar um preservativo, e a faixa salta diretamente para o facto de ele perceber que vai ter um filho. Há uma transição entre o momento em que Tyler está entusiasmado e feliz com a situação, mas depois fica nervoso, sentindo que talvez fosse melhor não ter um filho, especialmente porque está morto por dentro, acrescentando que We ain’t make it to love yet. Há sempre dois lados de Tyler a lutar dentro de si, no entanto, ele apoia qualquer decisão que Jane faça.
Jane apresenta o seu lado e responde aos pontos de vista de Tyler sobre querer manter segredo, estar entusiasmada e decidir ter a criança porque está a ficar mais velha. Ela diz que pode criar a criança sozinha e, como explica No matter the decision, I want us to be cool. Curiosamente, esta será uma mensagem muito semelhante mais à frente no álbum. A bateria faz uma separação perfeita nas mensagens partilhadas por ambos.
6. I Killed You featuring Childish Gambino
Os trompetes colaboram de forma espantosa com o som eletrónico. A respiração ao longo do álbum é um som tão orgânico que funciona naturalmente. Childish fecha a faixa com uma mensagem de apoio para se manter bonito e confiar na sua herança.
7. Judge Judy
Jogo de palavras (em inglês) com o programa de TV Judge Judy e não para julgar a Judy. A música fala sobre como Tyler nunca julga Judy e os momentos que eles passam juntos, assim como a sua história, fantasias sexuais e tudo que poderia fazê-la se sentir julgada. Ela deixou de comunicar com ele e enviou uma carta. Nesta, comunica que faleceu entretanto com cancro e que essa foi a razão pela qual deixou de lhe enviar mensagens. A faixa termina com uma mistura de sons de piano, baixo e sons orgásmicos para representar o amor sexual que tinham.
8. Sticky featuring GloRilla, Sexyy Red e Lil Wayne — apresentado ao vivo
Uma canção sobre ser ousado e fazer frente a qualquer pessoa. GloRilla, Sexyy Red e Lil Wayne falam exatamente sobre lutas no bairro, sobre as ruas, sobre o valor que alcançaram ao longo das suas carreiras e sobre como os outros os admiram. It’s getting sticky significa que a situação está a tornar-se mais complicada.
Há uma grande energia trazida pela música da banda de marcha que está muito presente em toda a faixa.
9. Take Your Mask Off featuring Daniel Caesar — apresentado ao vivo
Tyler começa o ataque com o rap Those face tats make people ignore that you’re sad. Funciona bem como seguimento do ato de fanfarronice mostrado na última faixa. Tyler transmite esta mensagem com a esperança de que a personagem para quem está a fazer o rap se encontre a si própria. O sintetizador na parte de trás, a crescer até ao refrão, é uma óptima adição.
Tyler fala de perspectivas muito diferentes, mas a sensação é sempre a mesma: de manter uma fachada enquanto a felicidade e a realização pessoal não estão presentes. Tyler fala com os bandidos, fala com os padres, fala com as mães que criam os filhos sem acreditar que elas têm um objetivo, e fecha a faixa falando consigo próprio. Não está confiante nos seus raps, não está confiante nas roupas que desenhou, não está confiante na sua presença em palco, mas continua a usar aquela máscara. Por isso, espera encontrar-se a si próprio, tal como espera que os outros se encontrem a si próprios. A faixa segue de forma espantosa depois da experiência que tivemos até agora.
No espetáculo ao vivo, Tyler tira a máscara, exatamente antes de começar a falar para si mesmo.
10. Tomorrow
A guitarra aparece para começar a faixa e a mãe dele a pedir uma criança. Voltamos ao tema de Hey Jane. Tyler reconhece que está a ficar mais velho, que o amanhã está sempre a chegar e que prefere que ninguém espere por ele. Aceita que ainda não decidiu se vai assentar ou continuar o estilo de vida com carros e roupas caras.
11. Thought I Was Dead featuring ScHoolboy Q — apresentado ao vivo
Uma exibição para todos os outros, enquanto os trompetes tocam a energia de exibição. Ele chama a atenção de toda a gente na cena do hip-hop e do rap, ao mesmo tempo que se coloca acima de todos os outros. ScHoolboy Q também traz a mensagem de ser do bairro, mas de se ter afastado do mesmo.
Para o espetáculo ao vivo, a energia de ScHoolboy Q é ideal. Tyler faz um discurso no final da música sobre como tentaram tirar-lhe tudo porque pensavam que ele estava morto, mas nunca tiveram o que era preciso, e ele continua a superar todos os outros. É muito engraçado como Q fica ao lado apenas esperando que tudo acabe, mesmo que ele pareça apoiar a mensagem.
12. Like Him — apresentado ao vivo
Começa com um discurso da mãe de Tyler e um pouco de piano, onde Bonita Smith lhe diz que ele é muito parecido com o pai, o mesmo que deixou Tyler. A insegurança volta a aparecer. Será que Tyler vai ser como o pai e deixar o filho, como fez no rap de Hey Jane?
Lola Young traz uma paixão tão grande a esta faixa que, na realidade, não precisava dela (mas é apreciada), tendo em conta o tema, o som e tudo o que a rodeia. A faixa termina com a mãe de Tyler a dizer-lhe que foi ela que decidiu que o pai não devia estar por perto e pede perdão a Tyler.
Na minha opinião, esta é a melhor faixa do álbum. Ela condensa o sentimento do álbum. A guitarra é absurdamente fenomenal e o sintetizador é espantoso.
Nunca tinha apreciado a voz do Tyler nesta faixa até ao espetáculo ao vivo. Ele soa tão emotivo, tão poderoso, tão introspetivo. Não é nada parecido com o seu rap, e faz sentido, porque é o que era necessário aqui. Esta voz transmite vulnerabilidade, ao mesmo tempo que ignora qualquer atitude exibicionista.
13. Balloon featuring Doechii — apresentado ao vivo
Don’t stop é uma mensagem que ecoa por toda a canção. Tyler canta sobre não gostar de superficialidade, trabalhar duro e auto-valorização. Doechii tem um verso fantástico que vai nesta direção, e encaixa muito bem com a batida escolhida para esta faixa.
Balloon vem exatamente depois de uma escuridão total, onde ouvimos a mensagem de Tyler sobre o seu pai. Isso torna a ordem do álbum ainda mais interessante, porque parece que ele tomou a decisão de parar de pensar em algo tão sério e apenas aproveitar a vida.
De acordo com Tyler, Daniel Caesar foi uma grande influência neste álbum, e isso faz todo o sentido com as aparições que verificamos ao longo do álbum. Caesar tem uma voz incrível, e ele trouxe uma emoção muito fundamental para o álbum.
14. I Hope You Find Your Way Home
I Hope You Find Your Way Home encerra a mensagem do álbum. Tyler está a falar consigo próprio sobre percorrer o seu próprio caminho, encontrar-se a si próprio e o que quer fazer. No final de tudo, a mãe de Tyler diz-lhe que está orgulhosa dele e ele fica satisfeito com isso. As dúvidas continuam, e ele continua a trabalhar para encontrar o seu próprio caminho. O sintetizador é espantoso como som de encerramento. No entanto, Tyler, sendo Tyler, prepara o álbum para ser ouvido em loop, e a mensagem de Chromakopia aparece no final da faixa, atuando como uma transição perfeita para o início do álbum.
As cores complexas de se ser humano
Este é um álbum cujo género é complicado de definir, e comecemos por abordar esse ponto recuando no tempo. Em 2019, Tyler ganhou o prémio Grammy de álbum de rap por Igor, e ele acreditava que o álbum não se enquadrava na categoria de rap e achava que colocá-lo nesse género era uma treta, porque whenever we — and I mean guys that look like me — do anything that’s genre-bending or that’s anything, they always put it in a rap or urban category, which is — I don’t like that ‘urban’ word. That’s just a politically correct way to say the n-word to me.
O Tyler tem estado a abrir caminho com o estilo que traz à sua música. É um feito surpreendente o facto de ele produzir, escrever e arranjar a sua própria música. Isso mostra que ele está a experimentar, mas, acima de tudo, está a expressar-se. É também uma das razões pelas quais é complicado, e um pouco errado, atribuir-lhe um rótulo, uma vez que acaba por ser uma mistura de muitos géneros diferentes que ele decide incorporar na sua criação.
Agora, com isso resolvido (ou não, porque acabei por não definir o género), é altura de olhar para o álbum e para os seus temas. A mensagem que Tyler partilha com este álbum é muito próxima da experiência humana. Há a insegurança de lidarmos connosco próprios, com as nossas decisões, com as nossas conquistas e com as pessoas que nos rodeiam. Também é muito compreensível querer mostrar ao mundo que essa insegurança não existe e que estamos prontos para seguir em frente, com as armas em punho, prontos para quebrar tudo e todos que parecem ser um obstáculo no caminho.
Para esta última mentalidade, podemos olhar para as faixas Rah Tah Tah, Sticky, Thought I Was Dead, bem como alguns excertos em parte das outras músicas. É uma energia completamente justificada para alguém que está no seu 8º álbum completo, tem uma marca de luxo (Golf Le Fleur), o seu próprio festival (que já dura há 10 anos), bem como dois Grammys (um para Igor e outro para Call Me If You Get Lost). Com a oportunidade de trabalhar com artistas que admirava, como Pharrell, Okonma conseguiu alguns feitos incríveis.
Apesar disto tudo, a insegurança continua a ser outra cor de Chromakopia. É um conceito plenamente concretizado com Noid, Hey Jane, Take Your Mask Off, Tomorrow e Like Him. Mesmo que todas as conquistas possam ser reconhecidas, ainda há um vazio na vida de Tyler. O luxo, os carros e o estilo de vida podem ser coisas que trazem felicidade, mas parece que ele está à procura de realização. Parte destas dúvidas é bem expressa pela sua própria mãe, que lhe diz que quer um neto, mas, ao mesmo tempo, avisa-o para não ser apanhado numa armadilha.
O aspeto paranóico de Tyler vai impedi-lo de amar realmente alguém, e ele não consegue lidar com o conceito de ter um bebé com alguém que não ama. O projeto vai mais fundo na sua psicologia ao perceber que os problemas pelos quais está a passar têm de ser resolvidos. Como reconhece em Tomorrow o tempo não pára o seu percurso e, ao reconhecer que a superficialidade não é o seu interesse, algo tem de mudar, quer interna quer externamente.
A herança cromática genética
E aqui entramos na complexidade central com a faixa Like Him. Para Tyler, a sua própria personalidade pode ser uma continuação do que ele carrega do seu pai. Pode ser que ele tenha realmente alcançado todo o sucesso que alcançou apesar do seu pai. No entanto, também pode ser que ele nunca se sinta realizado por causa do pai.
O álbum faz esta viagem maravilhosa em que percebemos que Tyler está a suprimir a sua insegurança, ao mesmo tempo que reconhece que está num grande momento da sua vida. Ter a sua mãe como narradora do álbum é uma chave emocional para desvendar algumas grandes mensagens desta produção.
Depois de tudo isto, é relevante dissecar a personagem St. Chroma. St. Chroma é a máscara que personifica o Tyler que ouvimos neste álbum, que, de acordo com uma teoria de fãs, poderia ser um personagem inspirado em Chroma the Great do livro The Phantom Tollbooth. Chroma, The Great é alguém cuja função é dirigir a orquestra que dá cor todos os dias. A remoção de Chroma e dos seus instrumentos significaria que o mundo não teria qualquer cor. É este fenómeno que se nota no vídeo oficial de St. Chroma.
Só quando St. Chroma perde a máscara é que podemos realmente olhar para Tyler Okonma. As dificuldades são visíveis para todos, a insegurança é palpável e, no entanto, Tyler aceita isso porque a mãe acredita nele e explica-lhe que, na verdade, ser como o pai pode não ser a pior coisa. Afinal de contas, ele queria estar por perto, mas foi o orgulho de Bonita que o expulsou. Talvez, tal como Jane, Bonita acreditasse que podia dar vida a Tyler sozinha, nem que fosse para continuar a ter uma boa relação com o pai de Tyler.
Afinal, todos temos as nossas máscaras, e tentamos cobrir algumas máscaras com novos disfarces e depois com novos cenários, e assim por diante. O teatro que representamos é um teatro enorme, sem guião, e estamos simplesmente a tentar sobreviver, talvez através de alguma superficialidade e alguma introspeção no equilíbrio 50/50.
O álbum de Tyler é incrível de ouvir. Os sintetizadores, o piano, o som da banda de marcha, a respiração, as letras e tudo o que é propositadamente arranjado por ele para este disco é muito deliberado e funciona como uma extensão da mente artística que vive por detrás de toda a luta e auto-confiança. É uma experiência para encontrar as cores na nossa vida e perceber que, por vezes, encontramos um arco-íris e outras vezes encontramos uma pintura a preto e branco. Ambos são bonitos; o quanto gostamos depende apenas da nossa disposição cromática.
A fechar, a mensagem do Tyler: I Hope You Find Your Way Home.
Até à próxima insónia,
Pedro Barreiro