Insónia: A Amiga Genial
Pequenos excertos de cultura para estar acordado da melhor forma
Recentemente tinha visto a lista do New York Times sobre os melhores livros deste século e encontrei no primeiro lugar dessa lista o livro L’amica geniale da Elena Ferrante. Este é um dos exercícios que tento fazer com o meu consumo de arte e explorar idiomas, culturas, campos artísticos que não tenham passado pelos meus sentidos. Ler esse livro seria um desafio para tentar perceber porque é que o livro é tão aclamado e também uma oportunidade para dar entrada na literatura italiana. Não, ainda não li O Inferno de Dante, nem O Príncipe de Maquiavel ou até O Nome da Rosa de Umberto Eco. Perdoem-me estas falhas culturais, nem eu sei porque é que leio alguns dos livros que leio.
No entanto, voltemos a esse ponto inicial que é a minha experiência com o livro de Elena Ferrante. Já sei, quem conhece o livro já está a gritar que é o primeiro de uma série de quatro, intitulados The Neapolitan Novels. Poderia ser prudente escrever sobre L’amica geniale quando terminasse o conjunto, mas como a prudência me aborrece e gosto de me surpreender com o que penso em diferentes épocas, aqui segue.
Faço sempre esta referência nos meus textos e irei apresentar um resumo curtíssimo do que trata o livro para quem estiver interessado e não quiser spoilers:
A história em causa é sobre a amizade complexa entre Elena Grego (conhecida como Lenú), a nossa narradora, e a sua amiga, Raffaella Cerullo (tratada por Lila). Lila é, de facto, uma amiga brilhante e este livro explora também o que é Nápoles nos anos 50, com variadas referências gastronómicas, artísticas, culturais e sociais. São explorados os primeiros amores, as primeiras descobertas, ciúme e até abuso sexual. O que se consegue perceber com este livro é que tudo acaba por ser intenso e nunca se sente forçado para criar impacto. As personagens são naturalmente fogosas, certas de si mesmas.
Peço desculpa, é aqui que tenho que me separar de quem não pretende spoilers porque já me sinto a derrapar no clássico conceito universitário de quem tem que escrever 20000 caracteres e percebeu que esgotou o seu conteúdo aos 2000. Curiosamente, vamos agora em 2124 caracteres, mas não é esse o propósito aqui. Vá, agora só estamos nós. Perfeito, já sabes o que acontece, não?
Espera lá, já vi que ainda estão aqui à espreita. Anda, anda, vai lá ler o livro, já voltamos a falar, este texto não vai desaparecer.
Portanto, quando abrimos o livro estamos em 2010. Lenú recebe uma chamada de Rino, filho de Lila, a explicar que a mãe desapareceu. Este livro começou-me logo a interessar porque usa uma técnica de escrita que deixa o futuro completamente em aberto. No momento seguinte iremos começar a perceber como foi a infância das duas amigas, mas já ficamos conscientes de que há um filho envolvido e que ambas são conhecidas há imenso tempo.
Elena e Raffaela já se conhecem desde muito pequenas. Vão as duas à mesma escola e é neste ambiente que se vai percebendo que Lila é especial e bastante inteligente. Muitos dos desafios escolares acabam por parecer bastante simples para Lila e esta é uma das primeiras marcas da amizade de Lenú com Lila. Há sempre uma figura mais avançada e uma outra figura que persegue, como que sob o efeito de magnetismo. O íman é mesmo das melhores representações para esta amizade porque Lenú sente uma admiração por Lila, mas sentirá também um afastamento quando as duas estão perante o mesmo desafio, seja na escola, em brincadeiras ou até relativamente a rapazes e paixões.
A possibilidade económica díspar entre as duas será algo que marca a relação, especialmente porque Lenú poderá ir para o ensino secundário, enquanto Lila terá que ajudar os pais com o negócio da família — a sapataria — , juntamente com o irmão, Rino. Falamos, neste caso, de raparigas com 11 anos e com a dura realidade económica, social e cultural de ter que parar de estudar para apoiar a família. Conforme Lenú explica ao longo da obra, mesmo que por vezes pareça só uma adoração, Lila é naturalmente genial e teria as possibilidades intelectuais para continuar a estudar, algo que é impedida por motivos financeiros.
Há até um acontecimento em que antes dos exames de Lenú, Lila a leva a ir ver o mar, mas acaba por desistir desse plano e trazer Elena de volta a casa. As invejas são abundantes nesta narrativa e, no entanto, não são irrealistas. Não é fácil vermos alguém que nos acompanha desde sempre a ultrapassar-nos. Talvez para Lila ainda pareça mais difícil porque sempre lhe transmitiram que tinha todas as possibilidades para ir muito longe. No entanto, é barrada e talvez tente manter Lenú perto de si, mas reconhece que não é o correto. Este sentimento não é expresso diretamente, mas até para Lenú o comportamento de voltar atrás é estranho em Lila, uma pessoa bastante decidida, pouco dada a retrocessos.
Lenú continuará na escola, mesmo que com algumas dificuldades, e Lila vai para a sapataria trabalhar com o irmão, Rino, e o pai, Fernando. Inicialmente Lila ainda estuda com Lenú até que, um dia, conta-lhe que está a preparar um projeto secreto com o irmão para desenhar uma linha de sapatos finos para homem e mulher.
Crescer não é fácil
Aqui terei que fazer uma pausa no resumo para explicar que Ferrante é fenomenal a incluir todos os dilemas naturais de crescimento enquanto conta as histórias que envolvem as duas personagens. A história também funciona porque vamos sabendo que Lenú não se sente confiante relativamente ao seu corpo, acabando por investir ainda mais na escola para sentir que tem algum valor. A própria atração magnética que sente por Lila é também reflexo disso, dessa necessidade de aspirar a uma figura que lhe parece mais atraente, mais genial, mais confiante e, no fundo, mais segura.
Esta capacidade de desenvolver as personagens é bastante subtil e há muitas complicações que estas personalidades enfrentam que serão muito semelhantes a algo que tivemos enquanto crescemos. Provavelmente até passaram por nós sem refletirmos verdadeiramente nelas, mas é aqui que Ferrante exibe o seu talento literário de forma orgânica.
Deixemos este apontamento para trás para acelerar o resumo. Lenú começa a perceber que Lila está a desenvolver-se e a crescer de uma forma que gera muita atração masculina, muito por causa da sua mística bastante natural. Esta realização é comprovada num baile na casa de Gigliola Spagnuolo em que Lila dança com vários rapazes, sem prestar atenção a nenhum deles. Lila está apenas a apreciar o momento, ignorando quem seja que partilha a dança com ela e é num destes momentos que os irmãos Solara, Marcello e Michele, aparecem. Ambos são conhecidos por serem de uma família com imensa influência no bairro, seja financeira ou social.
Os irmãos expulsam os amigos masculinos de Lila e as duas amigas acabarão por sair da festa para irem com os seus amigos. Isto poderá parecer informação acessória, mas mantenham o Marcello aí ao vosso lado. Não o deixem fugir, garantam que não desaparece da vossa vista. É importante, mais até do que acreditam!
As lutas entre comunidades não acabam e Rino irá forçar a ideia de querer ter mais fogo de artifício para a festividade de ano novo do que os Solaras, o que levará a uma exibição de parte a parte que apenas acaba com disparos (e aqui não me refiro a fogo de artifício) por parte de Marcelo e Michele em direção a Rino, Lenú, Lila e os seus amigos.
A relação entre Rino e Lila sofre um revés exatamente por causa deste evento, não tanto porque a irmã repreenda o irmão, mas mais porque a atitude dele é demasiado exuberante. A situação não melhora quando Rino decide mostrar ao pai os sapatos nos quais os dois irmãos têm andado a trabalhar, o que provoca a ira de Fernando por verificar que os filhos trabalham nas suas costas. Para Lenú a escola corre bastante bem, só que o seu amor de infância, Nino, não revela qualquer interesse por ela. Entretanto, Marcello Solara mostra vontade em casar com Lila. Lembram-se desse Marcello que continua aí guardado? Era esse mesmo que era importante. O rapaz paga televisões, o rapaz vai a jantares, o rapaz promete comprar os sapatos indicados acima (mas não o faz), o rapaz quer mesmo casa com Lila. Só que esta apenas tem desprezo por ele. O problema é que um casamento com Marcello representaria uma mudança financeira gigante para a família de Raffaela Cerullo.
A complicação de amar
Vou agora fazer um salto grande até ao final como um sapo saltaria sobre nenúfares: cada assunto será rapidamente explicado até que eu chegue à outra margem.
Lenú é convidada pela sua ex-professora Oliviero a visitar a irmã desta para aproveitar o verão na ilha de Ischia e tudo corre bem até ao dia em que aparece a família de Nino Sarratore. A atração por este é sempre presente, só que Lenú é abusada pelo pai deste, Donato Sarratore, e decide acabar as férias. O facto de Lila não lhe responder às cartas também a preocupa, mas este toque indecente por parte do pai de Nino marcará mentalmente Lenú.
Lila tenta afastar Marcello e acaba por perceber que Stefano Carracci está interessado nela e quer casar. Stefano irá investir no negócio da família e também terá Lila como sua mulher.
Lenú sente que tem que estar ao mesmo nível que Lila e começa a sair com Antonio, um mecânico que é imensamente apaixonado por Lenú, mas incrivelmente simples, e é sempre fácil de perceber que Lenú não sente qualquer atração por este, mas não aceita que Lila esteja mais “avançada” que ela. Este é mesmo um dos traços mais interessantes da composição do livro: a naturalidade com que este assunto é abordado mostra um conhecimento profundo da condição humana e, fundamentalmente, da nossa insegurança. No entanto, já lá volto, acabarei entretanto de explicar o livro.
Antes do dia de casamento, Stefano começa a ver que o negócio dos sapatos não corre tão bem como pretendia e sugere convidar Silvio Solara para o casamento de forma a criar boas relações no bairro. Lila não aprecia nada a ideia, mas aceita que seja o melhor para evitar maiores confusões, pedindo apenas que Marcello não apareça no casamento — este já teria lançado boatos relativamente a Lila no bairro.
Chegado o dia de casamento, Lenú é que a acompanha. Para mim é aqui que o livro mostra essa análise humana de forma única quando Elena afirma:
Jamais a tinha visto nua, me envergonhei. Hoje posso dizer que foi a vergonha de pousar com prazer o olhar sobre seu corpo, de ser a testemunha participante de sua beleza de dezesseis anos poucas horas antes de que Stefano a tocasse, a penetrasse, a deformasse, talvez, engravidando-a. Naquele momento foi apenas uma tumultuosa sensação de inconveniente necessário, uma situação em que não se pode virar o rosto para o outro lado, não se pode afastar a mão sem dar a reconhecer o próprio desconcerto, sem o declarar justo ao se retrair, sem portanto entrar em conflito com a imperturbada inocência de quem nos está perturbando, sem exprimir precisamente com a recusa a violenta emoção que nos abala, de modo que você se obriga a continuar ali, a deixar o olhar sobre os ombros de menino, sobre os seios de mamilos crispados, sobre os quadris estreitos e as nádegas rijas, sobre o sexo escuríssimo, sobre as pernas compridas, sobre os joelhos tenros, sobre os tornozelos arredondados, sobre os pés elegantes; e você finge como se não fosse nada, quando na verdade tudo está em ato, presente, ali no quarto pobre e um tanto escuro, a mobília miserável ao redor, sobre um piso irregular e manchado de água, e o coração se agita, e suas veias se inflamam.
Lavei-a com gestos lentos e acurados, de início deixando-a agachada no recipiente, depois lhe pedindo que ficasse de pé, e ainda tenho nos ouvidos o rumor da água que escorre, e me ficou a impressão de que o cobre da bacia tinha uma consistência semelhante à da carne de Lila, que era lisa, sólida, calma. Tive sentimentos e pensamentos confusos: abraçá-la, chorar com ela, beijá-la, puxar-lhe os cabelos, rir, fingir competências sexuais e instruí-la com voz doutoral, repeli-la com palavras bem no momento da maior intimidade. Mas no final restou apenas o pensamento hostil de que eu a estava purificando da cabeça aos pés, de manhã cedo, só para que Stefano a emporcalhasse durante a noite. Imaginei-a nua, como estava agora, envolvida pelo marido, na cama da casa nova, enquanto o trem chocalhava sob suas janelas e a carne violenta dele lhe entrava por dentro com um golpe preciso, como uma rolha de cortiça empurrada com a palma no gargalo de uma garrafa de vinho. E subitamente me pareceu que o único remédio contra a dor que eu estava sentindo, que sentiria, era achar um canto bem afastado para que Antonio fizesse em mim, naquela mesma hora, o mesmo e idêntico ato.
Esta afirmação mostra não só esse receio de perder Lila, o medo de ser abandonada por todo o mundo ao mesmo tempo que a sua melhor amiga encontra o amor, bem como o medo de a ver sofrer.
O casamento acontece, Lila e Stefano apreciam o evento em que todos se reúnem, mas com a celebração também começa a crescer a discórdia relativamente ao que está a acontecer, com a família da parte de Lila a acreditar que foi mal servida. É nesta altura que Marcello entra na festa. A entrada deste não passa despercebida, não por ser o Solara filho mas sim porque Lila verifica que o que traz calçado são os sapatos que preparou com o irmão e que Stefano havia comprado. É neste momento que a pergunta que lemos há cerca de 10 páginas atrás que Lila coloca a Lenú ecoa como um grito dentro de uma gruta:
“O que vai acontecer comigo, Lenu?”
Crescer não é nada fácil
Conforme já tinha explicado, este é o primeiro livro de uma série de 4 e eu só li este primeiro. É, verdadeiramente, um dos melhores livros que já li, uma experiência sobre a condição humana altamente interessante. O que apreciei mais é que a infância e a adolescência não são olhadas como épocas cor-de-rosa, mas também não são tão sinistras como os tempos medievais. A procura pelo reconhecimento, a necessidade de amor, a insegurança com o crescimento físico e emocional, todas essas peças de um puzzle pessoal que nos compõe.
É a questão das relações que Ferrante descreve de forma tão artística e natural. A relação entre Rino e Lila é afetada no momento em que Rino pretende mostrar aos Solara que também consegue competir com eles e ter um espetáculo de fogo de artifício à altura. A necessidade de afirmação é algo que todas as personagens procuram e, no entanto, algumas são altamente explosivas, como é o caso de Rino, e outras são absurdamente reservadas, sendo Lenú esse exemplo perfeito.
Parte desta diferença é também explicada pelas condições de vida que, no caso exemplificativo destes dois, os coloca em dois pontos paralelos: Rino tem que ajudar a família e trabalhar com o pai, enquanto Lenú tem a oportunidade de continuar na escola. Não significa isto que não ajude a família, mas é uma privilegiada relativamente a Lila e Rino. No entanto, conforme se verifica ao longo do livro, Lenú nunca sente qualquer vantagem relativamente a Lila. A amiga será sempre a amiga genial, aquela que conseguia fazer todos os exercícios na escola, aquela que tem um charme que atrai todos os rapazes e que irá casar.
Lenú sente-se atrasada relativamente a Lila e o relacionamento que mantém com Antonio é exatamente porque ela quer estar numa relação para não estar, mais uma vez, em segundo lugar para Lila. No entanto, Antonio acaba por ficar em segundo lugar para o interesse amoroso de Lenú, Nino Sarratore. A experiência de Lenú é sempre a tentar agradar alguém e nota-se uma falta de amor próprio e a procura de uma apreciação exterior para compensar essa ausência.
O que esta obra mostra de forma tão orgânica é a complicação de crescer. Tudo se torna ainda mais complicado quando sentimos que os outros à nossa volta estão a progredir muito mais rápido do que nós, o que torna esse progresso que sentimos atingir vazio e até inexistente. A sensação até poderá ser que estamos a regredir porque os projetos em que investimos não estão a ter o sucesso que antecipávamos, conforme Lenú sente relativamente à escola, ao relacionamento com Antonio e até à amizade com Lila. Nesta encruzilhada individual pode-se perder essa sensação de identidade, a consideração por outros e pelo que sentem por nós e até alguma inocência que é marca deste período de vida.
Retomando o início do livro, é este o motivo pelo qual o método usado por Ferrante se torna tão cativante. Grande parte destes desafios que Lenú (Elena Grego) e Lila (Raffaella Cerullo) — repito os nomes porque já há muito que as trato pelas alcunhas — parecem ter uma descrição aprofundada dispensável dado que até já sabemos que ambas serão amigas no futuro e que Lila até já tem um filho que, curiosamente, terá o mesmo nome que o irmão. Não me estraguem aqui o que vai acontecer nos próximos livros e porque é que o filho e o irmão têm o mesmo nome. De certeza que deve ser porque os nomes estavam todos esgotados no registo civil.
No entanto, por vezes, o genial não é a viagem. O genial é a oportunidade que tivemos de viajar com esse amigo. Agarrem-se aos vossos amigos geniais.
P.S.: Sei que existe uma série da HBO, mas quem me conhece já sabe que sou péssimo com séries, raramente acabo uma. Mas, segundo pesquiso, é uma boa opção. Não vos prendo mais.
Até à próxima insónia,
Pedro Barreiro